1 de out. de 2014

O Príncipe Encantado

Ele era um príncipe encantado. Bonito, forte, paciente, rico, justo. Andava num cavalo branco e nunca suava. Como todo príncipe encantado, ele casou-se com uma princesa com equiparáveis qualidades, que se guardou a vida inteira pra ele, o primeiro e único. E, depois de casados, deveriam ser felizes para sempre. Deveriam. Por que, como toda estória que se preze, havia uma vilã.
A vilã não era a moça provocadora, descabelada, de riso fácil e escandaloso, que era prima da princesa. Essa prima, que não se preocupava nada em se guardar pra um príncipe, nem com a própria maquiagem, passava longe de ser a vilã. A prima, que vivia de caso com rapazes enquanto a princesa tinha aulas de etiqueta, não tinha nada de vilã.
A vilã da estória era muito mais próxima da princesa do que sua prima safada. A vilã só aparecia quando o príncipe conversava com outra mulher na frente da princesa. E quando a princesa pedia pra ele ir ainda mais devagar. E quando ela pedia pra ele não sair com os amigos por que não gostava deles. E quando ela pedia pra ele gozar logo por que estava com sono. E quando ela pedia explicações do por quê dele ficar escutando seu disco preferido ao invés de prestar atenção nela reclamando da mãe.
A moça de riso fácil só era tentadora por que a princesa temia não trepar bem o suficiente pro príncipe. Morria de medo de perdê-lo caso ele conhecesse alguém mais interessante. O príncipe comeu a prima por que ela não se incomodava se ele estivesse meio fora de forma. Por que ela dava rindo, pedindo pra ele comer com mais força. E por que ela sabia ficar quieta quando ele só queria ficar quieto.
A vilã da estória é a insegurança.

31 de jul. de 2014

Não-correspondência

Eu conheci Nathália numa noite muito fria. Odeio noites assim pelo simples fato de que blusas de frio me deixam desconfortável. Mas Nathália me deixou muito mais desconfortável do que qualquer agasalho ou coisa do tipo. Ela me olhava e falava com tanta segurança que eu me sentia intimidado. Eu adorava o movimento que a boca dela fazia quando ela falava, então me limitei a fazer perguntas idiotas só pra olhar pra ela falando. Ela não ficou muito tempo do meu lado, por que, obviamente, devia estar me achando meio idiota.

Mas acontece que, surpreendentemente, as coisas funcionaram bem pra mim, e depois de algumas horas, consegui me aproximar dela. Ela, cabelos castanhos, pele clara e um par de olhos verdes que, não importava quando ou como, sempre que passavam por mim derretiam o meu ar frio e calculista. Veio uma conversa curta, que da vista da minha insegurança e nervosismo, foi um longo debate. Nós dançamos, toquei sua pele, cheirei seu cabelo, mordi sua orelha. Mas não a beijei. Foi muito bom, mas não deixou de ser decepcionante.

Como acontece depois de toda decepção, eu deveria estar triste e derrotado. Mas não. Parece que o dia amanheceu mais colorido. Me veio finalmente a motivação pra realizar os projetos que há tanto planejava. Até consegui acordar pra aula de 7 horas. 

A verdade é que o amor que faz bem é o amor platônico. Aquele que a gente tem que alcançar, e por isso acorda mais cedo pra ser bem sucedido e impressionar uma determinada pessoa.

Canibal

"Eu adoro surpresas", ela vivia dizendo. Apesar dele sempre ignorar. Tava bom daquele jeito, e surpresas eram complicadas. Tomar vinho na casa dela toda sexta e assistir um filme na casa dele todo sábado era fugir da rotina o bastante.
Ela morria lenta e dolorosamente. Não havia horizonte turvo. Não havia resgate pra salvar daquela calmaria. Era tudo segurança, tranquilidade, bonitinho. Era tudo asfixia. 
Ele sorria agradavelmente. Sabia que ela só precisava de um pouco de paciência. Lembrava que ela já tinha sido mais difícil, e mesmo assim ele a domesticara.
"Eu não sou sua cliente. Não ri assim pra mim". Queria ter acrescentado um "filho da puta" no final, mas não teve coragem. Só pare de ser tão agradável, era o que ela queria dizer. 
Ela foi dormir de cara feia na esperança dele tentar alguma coisa. Quem sabe ele insiste pra me comer, quem sabe ele não me chama de insuportável
Ele fez o de sempre, deu tempo pra ela, sabia que era só de tempo que ela precisava pra se acalmar.
"Eu vou embora. Não suporto mais isso. Prefiro voltar pra casa dos meus pais, me ferrar sozinha. Tudo em você me irrita. Eu demorei pra juntar coragem pra ir embora, mas essa hora chegou, meu querido. Adeus pra você a pro seu tédio. Eu quero dormir mal de vez em quando, eu quero chorar, quero ficar irritada de vez em quando. A sua vida perfeita me sufoca!". 
Ela acordou. 
Ele levantou. 
"Eu vou comprar pão", disse.



30 de jul. de 2014

canção vazia

sem lamentação
nem frescura ou encheção
de saco

não adianta rezar
não sei reparar
os estragos

não, eu não sei
consolar ninguém
eu não sei ser sensível
não sei fazer bem